Diálogo entre Adir Sodré e Beatriz Milhazes

Um red de Adir Sodré.

 

Um red de Beatriz, a moça de 1 milhão.

 
Abaixo reproduzo parte do texto do crítico Frederico Morais, publicado no catálogo “Leilão Maio de 2011”, onde ele sugere um diálogo entre o mato-grossense Adir Sodré (1961) e a carioca Beatriz Milhazes (1960), artistas da mesma geração mas com contas bancárias muito diferentes. Os desejos e os humores do mercado são indizíveis. 
 
“(…)Ainda em relação aos textos que fiz para os catálogos dos leilões, a primeira coisa a ser dita sobre Adir Sodré é que ele não é, nunca foi, um pintor primitivo.Começou a pintar com apenas 14 anos, em Cuiabá, onde frequentou o ateliê livreda Universidade Federal do Mato Grosso. Um ano depois já participava de coletivase integrava, ao lado de Gervane de Paula e outros, o grupo renovador da arte matogrossense, estimulado por Aline Figueiredo e Humberto Espíndola.
 
De início, sua pintura era apenas protesto ou, então, a crônica do seu quotidiano cuiabano.Mas rapidamente descobriu que a pintura é, também, uma linguagem, com suas leis específicas. A partir dessa descoberta e procurando compensar as carências de sua formação, passou a devorar velozmente, como um antropófago, tudo o que lhe caía nas mãos.Com um apetite insaciável, participa do suculento banquete da história da arte, brasileira e internacional, com a sem-cerimônia de quem não foi convidado, transformando suastelas numa verdadeira orgia visual. Philip Guston, Matisse, Chagall, Manet, Tarsila,Guignard, Manuel da Costa Athayde, a pop-art, o pattern, miniaturas persas, a arteerótica da Índia, e-makemonos japoneses, tudo é devorado por ele, vorazmente,pantagruelicamente, com casca e tudo.Põe tudo o que vê num único prato, perdão, num único quadro, o lirismo guignardiano e a erótica picassiana, os mitos da cultura de massa e os temas da atualidade mundial. Sua pintura é um interminável dejeuner sur l’art.
 
Como ele mesmo dizia, nos anos 80: “Eu chupo Matisse, lambo Picasso. Cada individual minha é uma coletiva de artistas”. A prática da pintura lhe traz tanta satisfação, que poderia dizer como Botero, que “meus quadros estão terminados quando chegam a um estado comestível, no qual as coisas se tornam frutas”.E assim como Botero pinta “cães-maçãs” e “prelados-maçãs”, Adir mostra em suas telas melanciasvaginas, montanhas-seios, pênis-borboletas, num transbordante processo de erotização da natureza. Uma cópula interminável. O que leram acima é um fragmento de texto de que escrevi, em 1992, para o fôlder de uma exposição de Adir Sodré no Japão, inédito no Brasil. Nunca mais o vi ou falei com ele. O que Adir estará fazendo hoje?
 
Quatro anos depois, em uma palestra sobre Beatriz Milhazes, eu dizia: “Ofeminino está presente em sua obra desde muito cedo. Porém, o que ela resgata dofeminino é esta espécie de segunda pele – a roupa, o ornamento, a maquiagem:rendas, brocados, plissados (memória arquetípica da coluna jônica), lenços, broches,camafeus, brincos, colares, a saia rodada, a flor e o laço de fita, o leque que se abre ouse fecha como expansão ou contenção decorativa. O corpo sobre o qual ela especulaé a história da arte, e esta segunda pele é, também, a pele da tela, a superfície doquadro. (…) Sempre houve, em sua pintura, uma tensão entre imagem e construçãoou entre o referencial externo e uma ordem interna, entre apropriação e conceito”.E agora, decorridos quase 20 anos do primeiro texto, 15 do segundo, folheandonovamente o catálogo de outubro de 2004, vejo, logo nas primeiras páginas, comrenovado prazer, os frutos, as flores e “otras cositas más” de Adir Sodré (fig. 20)(Fruteiras, óleo sobre tela, 1991), e os babados e rendados de Beatriz Milhazes (fig.21) (Mares do Sul, serigrafia, 1994). As duas obras quase se tocando, por pouconão embaralham seus temas, formas e cores.
 
No entanto, apesar de tão próximas e assemelhadas, as duas obras se distanciam, diferem, divergem, destoam.
 
Na mesafarta e sempre posta em que se transformou a tela de Adir Sodré, a metamorfose é contínua, tudo é simultaneamente isto e aquilo, fruto-flor-falo-vagina-polpa-espermacama- altar-bufê-buquê-fonte-relva-eucaristia-antropofagia. Os frutos se abrem, as formas deliram, as cores explodem.Se a imagem criada por Adir é indubitavelmente a de uma mesa farta, quese verticaliza na tela, como o cálice no ritual da missa, mas permite ser lida, também,como uma recriação do “jardim das delícias”, a imagem que me vem à mente ao vera serigrafia de Milhazes é a de um salão de festas visto do alto, com casais-rendasbailando em círculos.
 
Mas isso não é mais importante, para o confronto entre as duas obras. Não é caso de descartar o tema como algo carente de significado. Ostemas existem, sempre existiram, em todas as épocas e se afirmam mesmo nas obrasditas abstratas. Significam, portanto. Importa mais analisar o modo como os temassão tratados, isto é, a sua transformação gradativa em forma, gerando linguagem. Os temas se transformam, alcançando, por vezes, alto nível de abstração. O círculo,fig. 17 e  fig. 15a circularidade ou a redondeza são temas, como demonstrou Bachelard ao escrever seu ensaio “A fenomenologia do redondo”. Eu mesmo, ao analisar a arte colombiana, nos anos 70, me referi à Colômbia “como um país redondo”. E Paulo Herkenhoff, no livro que escreveu sobre Beatriz Milhazes, diz que ela constrói uma variada história do círculo.
 
Enfim, Adir Sodré e Beatriz Milhazes dialogam, no catálogo, afirmando suasdiferenças. Encontram sendo diferentes. Divergem sendo iguais. Ao metamorfosearfrutos em genitais, Adir desveste o corpo exacerbando a dimensão erótica de suapintura. Milhazes, ao contrário, re-veste, parece se esconder sob múltiplas vestes:babados, rendados, plissados, saias rodadas; Adir expande até quase a explosão, aforma, a cor e o desenho. Milhazes contém a forma, circunscreve, delimita, cria umcentro, às vezes imobiliza o próprio círculo. Adir infla seus frutos, os quer gordos, roliços, macios, aveludados. Milhazes achata, resseca, comprime, cria estruturas planiformes.Juntos, mas em oposição, recriam os binômios desordem/ordem, crise/construção,conteúdo/forma.(…)
 
Veja a íntegra do catálogo aqui: http://www.soraiacals.com.br/66

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